O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) informa o falecimento do seu histórico dirigente e militante Oscar Gatica, que faleceu de causas naturais em 29.01.2021, em Vitória, no Espirito Santo onde será enterrado no dia 31.01/2021 também em Vitória.
Breve biografia
Oscar Gatica tinha 71 anos. Era argentino naturalizado brasileiro. Pertenceu ao Grupo Guerrilheiro Montoneros na resistência à mais recente ditadura militar Argentina (1976 a 1983). Teve seus filhos com Ana Caracoche sequestrados e entregues para adoção de família de apoiadoras da ditadura Argentina. Foram recuperando adultos. Fugiu para o Brasil e se exilou amparado por uma campanha internacional do Grupo “O Clamor”, de caráter ecumênico vinculado a Arquidiocese de São Paulo, que atuou de 1978 a 1991 na defesa dos direitos humanos na Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia.
Foi um dos fundadores e foi dirigente regional e nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Por longos anos atuou no Espirito Santo, no Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH Serra), onde protagonizou o enfrentamento, desbaratamento e quebra da impunidade do Grupo de Extermínio “Scuderie Detetive Le Cocq”. Em decorrência foi perseguido e ameaçado de morte e teve que fugir e se radicar na Paraíba, onde por muitos anos atuou na extinta Sociedade de Assessoria aos Movimento Popular e Sindical (SAMPOPS). Também residiu e atuou no Ceará, junto ao Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS). Foi conselheiro nacional do MNDH por vários mandatos e também no regional Nordeste. Sempre foi presença atuante e engajada nos Encontros Nacionais do MNDH e nas Conferências Nacionais de Direitos Humanos. Entre outras marcas de sua atuação estão: a colaboração na formulação e criação do Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita); na pioneira atuação internacional do Regional Nordeste chamada DH Internacional; junto com José Zanetti (CESE) foi responsável por uma grande pesquisa de avaliação do MNDH; e foi um dos coordenadores da Campanha Nacional Permanente contra a Tortura.
Oscar Gatica constituiu-se numa das referências da luta por direitos humanos no Brasil e um dos históricos militantes da construção do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
Pronunciamento do Conselho Nacional do MNDH
OSCAR GATICA: Presente, agora e sempre!
Um dia triste. Uma semana depois de celebrarmos os 39 anos do encontro que deu origem ao Movimento Nacional de Direitos Humanos, o MNDH, nos despedimos de um de seus militantes, Oscar Gatica. Triste, muito triste!
Mas, como militantes de direitos humanos que acreditamos na organização e na luta, assim como Gatica nos ensinou, em sua memória e por sua memória, transformaremos esta tristeza em alegria. Porque aprendemos que é com alegria e pela alegria que fazemos luta.
Gatica nos ensinou a nunca perder a coragem e a esperança. Junto com Ana Caracoche não deixou de acreditar que seus filhos, roubados pelos algozes do arbítrio da ditadura argentina, voltariam para eles. E voltaram. Hay que luchar, todos los dias! No pasarán!
Gatica nos ensinou que se pode fazer política sempre, não precisa estar em posições de mando ou de direção. Ele dizia que, para dirigir, é preciso ter posições, propostas, atuar, em que espaço ou em que tempo seja. Ele sempre foi dirigente desde onde estivesse.
Gatica nos ensinou que nem sempre se pode conseguir o que se quer e o que se precisa conquistar. O que não se pode perder é o compromisso e o engajamento na luta. Certamente vivia em sua prática o chamado del Che difundido por Las Madres: “La unica lucha que se pierde es la que se abandona”
Gatica nos ensinou que nunca se pode aceitar, em hipótese alguma, que crimes contra a humanidade, como a tortura, continuem presentes e impunes. Aliás, nenhuma violação pode ficar sem responsabilização. Era intransigente, nunca cedeu um milímetro nesta luta. A entendia como compromisso ético por excelência
Gatica nos ensinou que a memória, a verdade e a justiça, assim, juntas e interdependentes, são potentes contra o arbítrio, as ditaduras, os totalitarismos. Sempre foi incansável parceiro e protagonista das lutas contra todas as ditaduras, um “Clamor”, aqui e em todo o Cone Sul: “Nunca más!”
Gatica nos ensinou que a organização popular se faz desde baixo, com os sujeitos que nem se reconhecem povo, popular, que são a fonte de toda a dignidade e de toda a razão para seguir lutando por direitos humanos. Acreditava na organização e na luta popular.
Gatica nos ensinou que não têm a menor graça os embates e as discussões políticas, por vezes acaloradas, as lutas, por vezes duras, sem um bom churrasco (de preferência com carnes argentinas), uma boa bebida, era flexível, se adaptava àquela disponível. Gostava de dançar, de namorar, de se divertir e de divertir.
Gatica foi autor na história e da história do MNDH. Participou, teve conflitos, fez grandes amigos e amigas, cultivou muitos amores, foi e continua presença. Ele pertence à luta por direitos humanos e a luta por direitos humanos não seria a mesma sem ele. O MNDH não seria o que é, sem ele.
Obrigado Oscar, Obrigado Gatica. Nós todos sabemos que o que vais continuar fazendo, agora de outro modo, é seguir nos empurrando, nos animando, nos exigindo, nos inspirando, a fazer a luta por direitos humanos, todos os dias. E o faremos, por tua memória, em tua memória.
Vai em paz, descansa na luz. Seguimos por ti e para ti, assim como por todas e todas que, como você, nos ensinaram que a vida vale a luta.
Fica nosso testemunho para que o teu testemunho não se perca. Nossa prece de gratidão.
Brasil, 30 de janeiro de 2021.
Conselho Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
Mensagem do amigo Zanetti (CESE)
Lá se foi nosso Gatica, motonero rabugento, intuitivo, argentino alfa, depois de tantas labutas e peripécias. Acolhido nas terras capixabas, me aproximei muito nos encontros e ‘cervas’ no Espírito Santo e já me divertia um bocado, saboreando seu incomparável pastel acompanhado por uma pasta verde, destas que se usa em churrasco, fora outras iguarias, salteñas, de olho no buraco no chão de sua velha Kombi, por onde circulava e vendia seus quitutes.
Folheando o livro “Clamor – a vitória de uma conspiração brasileira”, de Samarone Lima, deu para sentir a determinação da igreja progressista em defesa das democracias em declínio na América latina, orquestrada pela operação yankee Condor. Lá, Dom Evaristo Arns, o presbiteriano Jayme Wright, o Secretário Geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Phillip Potter (então com mais de 300 igrejas filiadas – protestantes e ortodoxas, e o incansável advogado Luiz Eduardo Luiz Eduardo Greenhalgh – uma confabulação ecumênica de primeiro time, para facilitar o corredor de fuga e salvar vidas – uruguaias, argentinas, chilenas…com tanta gente anônima no apoio.
Gatica, resolveu ele mesmo recuperar seus dois filhos sequestrados, contando com amigxs e cumplicidade da querida Ana Caracoche. “Pensei que estivesse morta” comentou numa destas reuniões de café (foto).
Com Gatica, com quem joguei peladas e tantas conversas, fomos designados – ele pelo movimento, eu pela CESE para fazer uma avaliação de meio termo e saber pra onde ia o MNDH, e porque Brasília seria tão estratégico. Andamos por meio Brasil, ouvindo amigxs e olhares externos, como Paulo Sérgio Pinheiro, Eloi Pietá, mas intensamente Leornardo Boff e Jayme Wright por seus compromissos com a gênese do movimento. Boff parecia estar ditando um livro de horas gravadas, tal a organização de seu pensamento.
Gatica não era de escrever, sistematizar – isso ficou comigo. Fizemos, creio, um bom relatório, depois compartilhado e distribuído pelo Conselho Nacional do MNDH – foi uma referência com hipóteses e aprendizados que desenvolvemos em quatro direções para que ele, o movimento escolhesse e não por indicação nossa, assim com maior abertura de alternativas, como se espera de uma avaliação democrática.
Gatica, era o ladino intuitivo, super informado, algo conspirador – com quem logo se ficava seduzido e cúmplice, caba bonito me lembrando um pouco aquele personagem, Ricardo Darin, do ‘Segredo de seus olhos’. Vai Gatica, fica Gatica nesta vida que é só nossa, titica.
Um beijo,
José Zanetti