(Re)existências: direitos humanos para quê?

Artigo de Paulo César Carbonari, doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil) e associado da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF).

(Re)existência ou “rexistência” é uma expressão do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A usou em apresentação que fez no Abril Indígena de 2016. Na ocasião ele dizia que os indígenas são “um exemplo de ‘rexistência’ secular a uma guerra feroz contra eles para desexisti-los, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os ‘cidadãos civilizados’, isto é, brasileiros pobres, sem-terra, sem meios de subsistência próprios, forçados a vender seus braços – seus corpos – para enriquecer os pretensos novos donos da terra”.[1]

O que ele diz dos indígenas, certamente também pode ser dito das negras e negros vítimas do racismo, dos jovens negros pobres periféricos vítimas da violência e do sistema penal, das mulheres vítimas do feminicídio e de tantas outras violências, das pessoas com deficiência vítimas do capacitismo, dos idosos e idosas vítimas do etarismo, enfim, de todas as muitas e diversas vítimas. Aliás, esta parece ser a questão de fundo do para quê os direitos humanos: as possibilidades da existência e da (re)existência… como condição de dignidade, como direito, como direitos humanos.

Uma posição comprometida com o enfrentamento desta realidade de (des)existência geradora de vítimas afirma que a possibilidade da (re)existência está no potencial insurgente da luta por direitos humanos… o que não é simples e nem se resume a adoção de um ou outro termo da moda que glamuriza e normaliza destruindo a potência criadora e insurgente. Para dar conta dos desafios desta posição é preciso mais do que “defender só com palavras a vida”, como dizia João Cabral de Melo Neto.

Para a efetivação de um programa que afirma a (re)existência o desafio é (1) partir de uma leitura de contexto na qual se identifica corrosão, inversão e retrocesso dos direitos humanos; (2) perceber as potencialidades e os limites da luta popular por direitos humanos no contexto; e (3) afirmar uma compreensão crítica e libertadora de direitos humanos radicada na luta popular insurgente.

Partir de uma leitura de contexto no qual se identifica corrosão, inversão e retrocesso dos direitos humanos leva a reconhecer que (1.1) há retrocessos nos direitos humanos: as desigualdades, as exclusões, as discriminações, os racismos, as xenofobias, os patriarcados, os machismos, os capacitismos, as aporofobias, as… levam a um “fato massivo”: 99% da humanidade é vítima de violações de diretos humanos! (1.2) Há corrosão das garantias e das institucionalidades dos direitos humanos que, além de serem atacadas, vão sendo inviabilizadas, destruídas, descapacitadas – nem sempre há ataque direto, o que se faz é “tornar oco” (mesmo que se preserve “santo”). (1.3) Há inversão dos direitos humanos, que passam a ser usados como recursos da “lei e da ordem” na guerra contra o inimigo (punitivista); da legitimação das “vidas matáveis” que aceitam “homens de bem” ou “humanos direitos” (seletivismo); e que reconhece direitos a quem “faz por merecer”, “tem poder de compra” (meritocracia do self mademan).

Perceber as potencialidades e os limites da luta popular por direitos humanos no contexto exige observar que (2.1) os “sem direitos”, os “ninguém”, os “condenados da terra”, seguem “subindo o Aventino” e promovendo lutas por direitos de muitos tipos, nem todas insurgentes, algumas “apenas pedindo inclusão”, mas muitas seguem acreditando no impossível e “esticando o horizonte”; que são (2.2) as “potências” presentes nestas lutas que geram a denúncia das violações de direitos já “proclamados”, as transformações necessárias para que os direitos cheguem como realização na vida de cada um/a e de todos/as e levantam “novos direitos” e “novos/as sujeitos/as”; e que (2.3) as repressões e contenções das possibilidades insurgentes, transgressoras, geradoras de possibilidades, alimentam o seguimento do processo de “travessia” como realização corajosa e alegre (ainda que no meio da tristeza).

Afirmar uma compreensão crítica e libertadora de direitos humanos radicada na luta popular insurgente requer (3.1) colocar os direitos humanos como processo aberto e em disputa para fazer o enfrentamento dos contextos degradantes que promovem capturas colonialistas, regulatórias e constrangedoras, com propostas construtivas, alterativas e alternativas; (3.2) alimentar aspirações (busca necessitada e inconclusa), garantias (instalação de institucionalidades favoráveis) e condições (materialização no cotidiano vital) (3.3) que promovam acesso e usufruto dos bens (materiais, simbólicos e espirituais) para a vida em abundância (o bem-viver, a participação direta e o reconhecimento diverso – combinação de redistribuição, participação e reconhecimento) para gerar “empotenciamento das potências” transformadoras, mobilizadoras e insurgentes dos direitos humanos.

Esse conjunto de possibilidades aqui esquematicamente apresentado enseja processos que fazem dos direitos humanos parte das lutas que, acima de tudo, não aceitam entregar aos “novos arautos da liberdade” (que na prática sempre foram os que foram fiduciários da opressão e da morte) as mais caras e significativas conquistas humanizadoras. Reforçar o que há de insurgente nos direitos humanos é, neste momento histórico, colaborar para que não sejam ainda mais capturados pelas malhas fagocitadoras da ultradireita.

Viva os direitos humanos como luta insurgente, como insistente exigência transgressora em nome da justiça, da paz e, hoje, necessariamente, da ecologia. Viva o dia mundial dos direitos humanos. Viva as lutas para não entregar o que ainda nos faz crer que todas as formas de vida humana cabem na humanidade… ou melhor, que a humanidade é acolhida e proteção a todas as formas de vida… nenhuma a menos, ninguém ficando para trás!

[1] Ver aqui.

Artigo originalmente publicado no portal IHU Unisinos.

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