O Brasil registrou em 2024 um dos maiores índices de conflitos no campo da última década, com 2.185 ocorrências, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O número mantém a tendência de alta iniciada em 2020. O Maranhão foi responsável por 420 registros, destacando-se entre os estados mais afetados.
Diante desse cenário, defensoras e defensores de direitos humanos de todo o Brasil estiveram reunidos no dia 22 de maio para a 36ª Plenária de Organizações Referenciais nos Territórios, realizada de forma remota como parte das atividades dos projetos Sementes de Proteção Popular e Defendendo Vidas. “Nosso objetivo é debater os dados a partir da realidade vivida nos territórios”, explicou Paulo Moreira, integrante da iniciativa.
A plenária faz parte de uma agenda voltada à promoção de estratégias de proteção popular, com foco na autoproteção, na proteção recíproca e solidária de coletivos e singularidades em situação de risco. Participaram representantes de diversas organizações da sociedade civil que atuam nos diversos estados brasileiros.
O calendário é mensal e reúne representantes de organizações de direitos humanos de todos os estados brasileiros que estão engajadas na implementação dos Projetos Sementes de Proteção Popular e Defendendo Vidas. Na maioria são organizações filiadas ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), que é uma das organizações que, junto com a CPT e outras, estão associadas à Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e a We World Brasil (WWB), com apoio da União Europeia e da Misereor para promover a proteção popular de defensoras e defensores de direitos humanos.
Paulo Moreira destacou que o trabalho da CPT, iniciado em 1985, é fundamental para documentar violações no campo. “Negar a história é uma das principais estratégias do inimigo. Esse relatório é prova de que os conflitos existem e resistem, mesmo quando não são registrados”, afirmou.
Os dados foram apresentados pelo historiador Ronilson Costa, coordenador nacional da CPT. O relatório aponta três principais eixos de conflito: terra, água e trabalho. Os casos de disputa por água subiram de 230 em 2023 para 266 em 2024. Já o trabalho escravo gerou 1.528 ocorrências, com 1.163 vítimas.Maranhão lidera registros – Desde 2009, o Maranhão figura entre os três estados com mais conflitos no campo. Segundo Ronilson Costa, o estado atrai o agronegócio devido ao Porto do Itaqui, clima favorável e áreas de chapada. “Há uma verdadeira guerra química nos territórios maranhenses, com o uso intensivo de pulverização aérea”, denunciou.
O historiador alertou que, embora as ações de retomada por reforma agrária tenham diminuído, os conflitos agora recaem sobre comunidades tradicionais, territórios quilombolas e camponeses.
Violações múltiplas – As formas de violência no campo se multiplicaram. Em 2024, 13 pessoas foram assassinadas em 12 territórios. Lideranças comunitárias, indígenas, trabalhadores sem terra e mulheres estão entre os principais alvos. Há 35 casos registrados de intimidação e contaminação por mineração envolvendo mulheres.
Um dos dados mais alarmantes é o aumento de 762% nos casos de contaminação por agrotóxicos na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Houve também crescimento de 113% nos registros de desmatamento e incêndios criminosos, ações ligadas à expansão do agronegócio sobre terras indígenas, quilombolas e camponesas. A prática da pistolagem e o uso de forças de segurança pública em expulsões aumentaram 150%, somando 245 casos.
A atuação de forças policiais é recorrente nos episódios de despejo e repressão a manifestações. O relatório destaca ainda que muitos conflitos se originam pelo não cumprimento de procedimentos legais, o que revela falhas estruturais na regularização fundiária e na mediação estatal.
“O Estado brasileiro tem financiado a escalada dos conflitos. O Movimento Invasão Zero, por exemplo, é estruturado dentro da máquina pública. O caso do assassinato da indígena Nega Pataxó, na Bahia, é emblemático”, criticou Ronilson Costa.
Ameaças nos estados – Representantes de diferentes regiões relataram o agravamento da violência. Edson Mendes, do Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès, no Mato Grosso, informou que 56 pessoas estão ameaçadas, sendo 34 sob risco de morte, especialmente no norte e nordeste do estado. No Amapá, Alessandra Cunha, que integra o CPT no estado, apontou o salto de 13 mil para 20 mil pessoas envolvidas em conflitos fundiários, após a transição recente no repasse de terras. “A condição jurídica frágil expõe ainda mais os posseiros”, alertou.
Expansão de facções – Outro ponto crítico é a presença crescente de facções criminosas nas zonas rurais. Paulo Moreira alertou para a infiltração de grupos criminosos, que utilizam comunidades como corredores estratégicos para o narcotráfico. Em alguns casos, integrantes chegam a se passar por indígenas para atuar nos territórios.
Ronilson reforçou que esses grupos ocupam áreas fragilizadas, formando alianças para expandir seu domínio. Há ainda conexões preocupantes com o agronegócio. “Em Goiás, foram apreendidas quatro toneladas de cocaína em uma fazenda de um cantor sertanejo. A ausência do Estado, com escolas precárias e serviços insuficientes, cria um ambiente propício à atuação criminosa”, disse, destacando a gravidade da situação na Bacia Amazônica e regiões de fronteira.
Resistência nos territórios – Apesar do cenário de violência, a mobilização nos territórios continua. Em 2024, foram registradas 649 manifestações, envolvendo quase 170 mil pessoas, além de 78 ocupações ou retomadas e a criação de 10 novos acampamentos. As principais pautas são a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e os direitos territoriais.Irene Santos, do Instituto Brasil Central (Ibrace), em Goiânia, defendeu estratégias políticas para dar visibilidade à causa. “Precisamos levar esses dados ao Senado, à Câmara e às assembleias legislativas. O avanço das políticas não depende só do Executivo”, avaliou.Para Fátima Matos, do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará, as ameaças não atingem apenas a uma pessoa, o registro não é individual. “Ele atinge todo o corpo social da família, todas as pessoas, temos que incidir sobre o sistema de garantia de direitos. Cadê o Ministério Público e a Defensoria Pública acompanhando estes casos?”, questionou.
Conflitos como reflexo de um modelo econômico – Os dados reunidos no relatório não apenas expõem a escalada da violência no campo brasileiro, como também servem de ferramenta de denúncia, mobilização social e cobrança por políticas públicas eficazes.
Ronilson Costa encerrou o debate trazendo a reflexão de que o mapeamento dos conflitos é essencial não apenas para denunciar, mas também para mobilizar e cobrar políticas públicas, e encerrou o debate citando o economista Guilherme Delgado, que identifica dois motores principais da violência no campo: a superexploração da terra e da água, ambos transformados em commodities para exportação. “Enquanto houver expansão acelerada do agronegócio nos moldes atuais, os conflitos vão persistir — mesmo que o impacto social demore a ser mensurado”, concluiu.
Foto: MST Texto: SMDH