Direitos Humanos em travessia: esboço de uma reflexão em construção

Paulo César Carbonari*



“Há um tempo em que é preciso / abandonar as roupas usadas
que já tem a forma do nosso corpo / e esquecer os nossos caminhos
que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia / e, se não ousarmos fazê-la
teremos ficado, para sempre, / à margem de nós mesmos”

Fernando Pessoa. Tempo de Travessia


O mundo vive um momento ímpar. Atinge de modo profundo, mas muito diferenciado os diversos grupos humanos. Refletir sobre esta situação em situação já é um exercício de pensar em travessia. O faremos aqui em breves traços que ainda esperam ser aprofundados em elaborações posteriores.

Uma rápida caracterização poderia apontar alguns aspectos deste contexto. O momento é: a) muito triste: pelas milhares de mortes no mundo e também no Brasil, ainda que possamos nos alegrar com a boa quantidade de pessoas recuperadas; e b) único e intenso: nenhum/a de nós viveu uma situação semelhante, já que a última pandemia tão ampla foi no início do século no final da primeira grande guerra, com a “gripe espanhola” e a intensidade é forte pois toma a vida na sua totalidade em questão, não um ou outro aspecto dela.

Além destas, pode-se agregar outros dois aspectos que tratam mais do modo como se pode ou não reagir ao que se vive. Trata-se de uma situação: a) incerta e insegura: em razão da vasta e forte contaminação além da dificuldade de identificar alguma solução para seu enfrentamento imunológico; e d) complexa e exigente: pois que exige a mobilização de conhecimentos, mas também, de atitudes e procedimentos consistentes e coerentes que cobram a mudança de hábitos e de orientações de vida.

Neste contexto é de se perguntar: que significado tem este momento? Que sentido tem defender direitos humanos considerando este momento? O que podemos dele aprender? Estas são questões que nos orientarão na reflexão que pretendemos desenvolve, sem pretender respondê-las, mas tomando-as como guia da reflexão.

Chave: travessia… A ideia de travessia ajuda a compreender o momento. Vamos buscar subsídios para tratar de seu sentido, pois ela pode subsidiar para a construção do significado do momento que vivemos e também podem nos ajudar a refletir sobre os direitos humanos em travessia.

O grande escritor brasileiro, Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas (1956), dizia que, quem fica entretido nos lugares de saída ou da chegada nada vê no meio da travessia. Ele desafia a uma certa “ontologia da realidade presente” aberta a possibilidades! Segundo ele “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (1994, p. 86). E, noutra passagem, quem se propõe à travessia é como o que “[…] quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou” (1994, p. 43).

Três aspectos ajudam a compreender o significado de travessia: a condição contextual, a condição antropológica e a condição ética.

A Condição Contextual diz que a Covid-19 ataca corpos vulneráveis e mais ainda os mais vulnerabilizados pela desproteção resultante da concentração dos bens comuns e da desigualdade, da pobreza que afastam as maiorias da realização de direitos, condenados que restam “à sorte” do mérito.

A Condição Antropológica diz que os/as humanos/as são finitos e conscientes de sua inconclusão, frágeis ao ambiente natural, mas também abertos/as e em processo de humanização como obra humana cuja vocação é ser mais (o que inclui também o seu inverso, a possibilidade de desumanização pela opressão).

A Condição Ética diz que tornar-se humano é promover a vida como incondicional (vida é valor e condição de todo valor) em processo para sua produção, reprodução e desenvolvimento como vida em abundância (amor à vida) (mas pode também submeter a vida ao “cálculo do suportável” como se fosse possível algum tipo de eficiência ética).

Travessia pode ser simples passagem, passamento, ultrapassamento. Mas também pode ser: a) experiência de processo; b) exercício de paciência; e c) abertura para a incerteza. Todas estas possibilidades serão realizáveis se a crítica e a reflexão forem mantidas, se o engajamento solidário for motivado e se a responsabilidade for exercitada…

Direitos humanos em travessia significa compreender a contingência da travessia. É também compreender que os direitos humanos estão nela. Mas não é abrir mão da universalidade, da interdependência e da indivisibilidade dos direitos humanos; o que também exige não abrir mão das responsabilidades com a realização de todos os direitos humanos com todos/as e para todos/as.

Aprendizagens necessárias são recolocadas no contexto em que estamos vivendo para a construção de novas perspectivas. Poder-se-ia dizer do fundamental de: a) aprender a viver o presente; b) aprender a significar o passado; e c) aprender a reinventar o futuro. Em outras palavras, aprender a compreender e a viver profundamente a temporalidade e a historicidade.

No fundo, isso será possível se for mantido o desejo do infinito, o desejo do impossível, que são capazes de nos ajudar a lidar com a “situação limite” que estamos vivendo para desenhar um “inédito viável”. Esta é a tarefa pedagógica mais forte a ser levada adiante no contexto em que vivemos. Ainda que a margem que imaginarmos possa ser bem outra daquela a que se chegar, dificilmente se chegará a alguma se não se mantiver a imaginação em ação.


* Doutor em Filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos (CDHPF/MNDH). Elaboração a partir do material preparado para dar base à palestra on-line “Direitos Humanos em Travessia”, realizada no dia 28/05/2020 por meio eletrônico para o Instituto Vívere (íntegra disponível em www.facebook.com/institutovivere). Agradecimentos ao Rudimar Barea e a Nicoli Nicoluzzi pelo convite e oportunidade e também a quem participou pelos comentários e contribuições.



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