Versão para português sob a responsabilidade do Movimento Nacional de Direitos Humanos. Obrigado pela colaboração de Raimundo Nonato Sousa (MNDH PI) e Paulo César Carbonari (MNDH RS).
A FIDH é uma rede de 192 organizações de direitos humanos de 112 países. Esta declaração política contextualiza e analisa as ameaças que a pandemia mundial da Covid-19 colocadas para os direitos humanos e situa a FIDH no diálogo mundial sobre as questões atuais específicas de direitos humanos. A declaração se divide em cinco partes. Nas partes 1 a 3 se esboçam os fatores políticos e econômicos que precederam a pandemia e cujas repercussões manifestam a incapacidade dos Estados para fazer frente à pobreza e à desigualdade nas suas sociedades. Nas seções 4 e 5 são reafirmados os valores mundiais da Federação e sua razão de ser.
1. Desde o começo do século XX e, sobretudo a partir dos anos 70 e 80, a prevalência de uma política neoliberal determinou as políticas monetárias internacionais em organismos como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, e influenciou em muitos organismos do sistema das Nações Unidas e do sistema intergovernamental, entre outras, como na Organização Mundial da Saúde. Esta política repercutiu e entrou nas políticas de muitos governos do Norte e do Sul e acentuou as divisões de classe em sociedades nas quais já haviam profundas desigualdades. Em consequência disso, os Estados não têm conseguido cumprir com seus deveres e responsabilidades cívicas. Em países com constituições e sistemas jurídicos democráticos, os governos eleitos independentemente de sua filiação política, têm estado principalmente a serviço do mercado e dos interesses privados, o que gera desigualdades sociais dentro dos próprios países, assim como nos países não democráticos. Em razão da crescente interconexão, a globalização tem repercussões que transcendem as fronteiras nacionais. Os Estados não estão cumprindo ou, no melhor dos casos, se lhes impede de cumprir com seu mandato democrático de garantir os direitos e a proteção a sua cidadania segundo estabelecem as normas e a leis internacionais de direitos humanos. De fato, vários Estados impõem leis draconianas repressivas à sua cidadania, em consequência das quais a vigilância direta e a detenção arbitraria correm o risco de converter-se em norma.
2. O sistema e as estruturas neoliberais tiveram consequências diretas observadas na falta de capacidade de reação adequada à Covid-19 e na sua transformação em pandemia mundial, assim como na natureza discriminatória e autoritária das respostas a esta crise:
a) Apesar dos alertas dos especialistas em epidemiologia, os Estado não estavam preparados para lidar com a crise da Covid-19, da mesma maneira que já haviam demonstrado não serem capazes de enfrentar outras crises de saúde (malária, Aids, ebola) e nem as catástrofes de longo alcance, como a mudança climática. Os sistemas e políticas de saúde praticamente colapsaram em todo o mundo, inclusive em países desenvolvidos. Os programas de ajuste estrutural e as políticas econômicas neoliberais modificaram profundamente o paradigma da governança pública para apoiar os interesses do mercado e as restrições dos orçamentos públicos exigidas pelas instituições financeiras internacionais (IFI) em detrimento dos direitos das pessoas à vida, à saúde, à alimentação e a outros direitos básicos. A saúde pública foi convertida num produto ao invés de ser considerada um bem público, com políticas que agora são medidas em número de mortes e de infecções.
b) Quando são aprovadas mudanças políticas de grande alcance e enormes pacotes de ajuda financeira para diminuir o impacto econômico da crise, frequentemente são favorecidos os interesses das empresas e dos mais ricos negligenciando as necessidades fundamentais das classes médias, assim como das pessoas em situação de maior vulnerabilização na sociedade. Segundo um informe publicado pelo Institute for Policy Studies, “durante as 11 semanas posteriores ao 18 de março, quando começou o confinamento nos EUA, a riqueza das pessoas mais ricas do país aumentou em mais de 565 bilhões de dólares, enquanto 42, 6 milhões de trabalhadores/as pediram seguro desemprego”[1]. Todo isso, enquanto as mulheres, os sem teto, crianças e adolescentes em situação de rua, trabalhadores/as informais ou precarizados, pessoas sem acesso à internet, imigrantes, refugiados, apátridas, sinti, ciganos, nômades, dalits, indígenas e povos originários, LGBTI, pessoas que vivem em zona de guerra e conflito, encarcerados/as, deficientes físicos ou psíquicos, idosos em abrigos, entre outros, viram-se desproporcionalmente afetados pela crise e, frequentemente, ficaram à margem das respostas dos governos. Assim, a crise sanitária mundial pôs em relevo o que a FIDH vem denunciando desde sua criação: as crescentes desigualdades em nossas sociedades, o racismo, a discriminação e a violência, práticas sistêmicas e institucionalizadas, arraigadas nas políticas socioeconômicas que são concebidas para servir a uma minoria e não à maioria. O ex-Relator Especial das Nações Unidas sobre Extrema Pobreza, Philip Alston, condenou a “filosofia do darwinismo social que dá prioridade aos interesses econômicos das pessoas mais ricas enquanto faz muito pouco por aquelas que trabalham muito para proporcionar serviços essenciais ou que não podem se manter a si mesmas”[2].
c) No mesmo contexto, impulsionados por um aumento geral da iniquidade, muitos países de todo o mundo vêm utilizando esta crise para ampliar seu poder e tem se dedicado a suprimir agressivamente os direitos fundamentais e as liberdades individuais de sua cidadania. O que está acontecendo atualmente nos recorda o modo pelo qual o governo dos EUA e seus aliados da Europa e outros lugares usaram como resposta aos ataques terrorista do 11 de setembro de 2001, iniciando uma guerra a partir de uma premissa baseada na mentira e na ganância. Longe de frear a ameaça do terrorismo, os Estados amordaçaram as sociedades livres e abertas e suprimiram ainda mais o direito à autodeterminação. No meio da crise da Covid-19, muitos Estados, sob a aparência de legislação de emergência, promulgaram leis sobre cidadania e antiterrorismo que reforçam seu poder autoritário em lugar de centrar-se em conter a propagação do vírus. Chegou-se, inclusive, a libertar criminosos convictos em lugar de membros da oposição política e defensores/as de direitos humanos. Estas medidas têm sido acompanhadas de ferramentas de vigilância específica, um verdadeiro maná para os regimes autoritários que pretendem controlar as dissidências e acabar com elas.
d) A crise serviu como uma oportunidade para muitos governos ao redor do mundo tirarem vantagem do aumento da cobertura da crise pela mídia e, assim, fortalecer descaradamente e acelerar violações de direitos humanos. As organizações participantes da FIDH denunciaram a aceleração da apropriação ilegal de terras, em particular nas zonas de proteção natural, a colonização, a ocupação estrangeira, as intervenções militares ilegais, a legislação anti LGBTI, a redução dos direitos sexuais e reprodutores, o apoio a movimentos extremistas pára-estatais violentos como os talibãs, Dáesh, Boko Haram, RSS, movimento 969, grupos neonazis, Ku-Klux-Klan e outros movimentos de supremacia branca. Nossos membros também denunciam como vários governos estão retirando seu apoio a Tribunal Penal Internacional – o último recurso à justiça internacional para autores de crimes graves.
3. Entretanto, enquanto esta crise se desenrola, protestos populares e movimentos sociais estão aumentando, liberando sua ira e demandas por justiça e igualdade. Antes da aplicação das medidas de ontrole e, desde os primeiros dias da suspensão das restrições e de isolamento doméstico, joven,s e também não tão jovens, tomaram as ruas do mundo inteiro para marchar por uma sociedade mais justa, contra a corrupção e poder autoritário, contra as políticas neoliberais das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e o sistema bancário global, por uma moratória e redução da dívida, e em apoio a uma renda básica universal. Eles usaram a mídia e as redes sociais para denunciar a misoginia, a violência contra mulheres e meninas, o feminicídio, o ecocídio, o militarismo e, mais recentemente, denunciar o racismo institucionalizado e sistêmico, a violência do estado através da brutalidade policial com negros/as, o encarceramento em massa e a xenofobia, incluindo a islamofobia e o anti-semitismo. Estas manifestações populares são a inspiração para nosso movimento e incorporam a esperança de que a mudança venha.
4. Como defensores/as dos direitos humanos, nosso principal desafio é recuperar as condições socioeconômicas, culturais e os fundamentos políticos da vida, os meios de subsistência e a liberdade. Nossa dignidade como seres humanos e nosso direito a proteger nossas comunidades de todos os predadores e dos poderes coercitivos devem estar no coração de todas as políticas do Estado. Desde 1922, quando a FIDH foi criada, a defesa dos direitos humanos exige que a defesa dos direitos e liberdades individuais ande de mãos dadas com os valores democráticos e a conceitos como: universalidade de direitos, a dignidade e a defesa de todos os direitos de todos os povos em toda parte. O mundo deve pôr um fim imediato a todas as formas de discriminação, racismo, estigmatização, misoginia e violência contra mulheres e meninas.
5. Por fim, impulsionados por nossos valores de liberdade, solidariedade, justiça e igualdade, o principal objetivo da FIDH é unir aqueles/as que lutam por um mundo justo e equitativo. Nossas organizações membro estão presentes na base, nos níveis nacional e regional, trabalhando juntas para denunciar violações, responsabilizar os autores e advogar por mudanças sociais. Para as pessoas que são reprimidas e violadas, somos a testemunha indignada que desafia a impunidade; para os/as defensores/as dos direitos humanos, somos o sistema de apoio que promove com determinação a mudança; para governos e formuladores de políticas, somos a fonte especializada de fatos e evidências e; para autores de violações, somos os/as guardiões/ãs destemidos/as que exigem responsabilização.
No contexto da pandemia e ante a contínua opressão que sofrem os/as defensores/as de direitos humanos, nós, membros do Conselho Internacional da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH), estamos unidos na definição e defesa de nosso objetivo comum de lutar por um mundo onde o estado de direito prospera e a discriminação em todas as suas formas é eliminada.
25 de junho de 2020
Paris, França
Conselho Internacional
Federação Internacional dos Direitos Humanos – FIDH
[1] Reuters Business News, “America’s billionaire wealth jumps by over half a trillion during the COVID-19 pandemic: report, June 2, 2020.
[2] See “Responses to COVID-19 are failing people in poverty worldwide”, Statement of Philip Alston, the UN Special Rapporteur on extreme poverty and human rights, 22 April 2020, www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25815&LangID=E June 2020 IB meeting – Réunion du BI de juin 2020 – Reunion del BI de junio de 2020 FIDH